Manifesto em defesa da saúde dos territórios tradicionais
Em meio a um cenário de emergência na saúde pública do país, a Covid-19 revela novamente as faces das desigualdades socioterritoriais: povos lutando para garantir seus direitos à proteção da quarentena, estabelecida através de decretos e demais instrumentos jurídicos para o controle sanitário a partir do conhecimento científico, contrastando com atitudes irresponsáveis de turistas que insistem em romper determinações das autoridades para fugir da realidade urbana e se abrigarem em casas de veraneio, colocando em risco a saúde da população local.
O avanço do coronavirus, sem que medidas eficientes sejam criadas, respeitadas e fiscalizadas, causará a morte dos mais pobres e vulneráveis, não só nas periferias urbanas, mas também nas comunidades tradicionais, onde, além de uma vida, a morte de um mais velho representa a perda de memórias preciosas de toda a comunidade. E a morte dos mais jovens é a erosão da continuidade dos conhecimentos naturais herdados.
Essas comunidades geralmente estão em lugares onde o acesso é mais distante e a assistência pública não supre as diversas demandas locais. Embora haja decretos e outros instrumentos jurídicos que determinem o impedimento de atividades turísticas e a entrada de não moradores, é constante o enfrentamento dos turistas às barreiras comunitárias de controle sanitário.
Pessoas que, ou não acreditam na gravidade da situação ou que estão fugindo dos centros urbanos, frequentemente tem causado dificuldades ao controle e ao isolamento social recomendado como prevenção e cuidado para a população. Tentando muitas vezes se valer de status financeiro e de posições sociais e até mesmo de agressividade, insistem em ações que não condizem com um mínimo de respeito, empatia e responsabilidade social. Acatar as orientações dos profissionais da saúde pública e FICAR EM CASA é um dever de cidadania que expressa solidariedade e humanismo. E isso nada a ver com posições politico-partidárias! Num cenário atual do mundo em que dezenas de países lutam para conter os estragos da pandemia Covid-19, insistir em discursos demagógicos a alienados em nada contribui para a resolução dos fatos. Ao contrário, só alarga o abismo social de exclusão através do qual foram construídas as bases históricas do Brasil.
As comunidades tradicionais vêm há muitas décadas resistindo à especulação e ao roubo de seus territórios, ao turismo de massa destrutivo do meio ambiente e dos modos ancestrais de vida, aos projetos desenvolvimentistas que visam somente o lucro empresarial e às inúmeras ações estatais que desestabilizam suas vidas e suas culturas.
No entanto, essa luta se intensifica nesse período em que a falta de conscientização e a circulação das pessoas podem ocasionar um colapso do sistema público de saúde. E isso afetará predominantemente as populações mais desassistidas pelo Estado, como ocorre sempre. Nos centros urbanos e nas comunidades tradicionais. Ao mesmo tempo, as instituições de fiscalização se mostram ineficazes no combate às atitudes irresponsáveis e muitas vezes violentas que expõem as comunidades à violação de seus direitos constituídos e ao risco iminente de terem suas famílias contaminadas.
A pandemia, que chegou pelos ricos, muitos dos quais possuem casas nas praias onde agora querem se refugiar, escancara mais uma vez a realidade desigual do país através de uma área fundamental, a da saúde pública. Enquanto muitos que insistem em minimizar a situação e até mesmo negar a gravidade dela, indo na onda do discurso irresponsável propagado pelo presidente, da necropolítica, que mata através de políticas neoliberais e redução dos investimentos sociais, enquanto muitos desses podem se tratar em clínicas e hospitais particulares e estocar mantimentos em grande quantidade, a população se encontra vulnerabilizada, seja nos aglomerados urbanos das periferias, seja nas comunidades tradicionais. Lugares com muitos idosos, o principal grupo de risco.
Entretanto, todas as vidas são importantes! É preciso repensar o sistema econômico ao invés de se considerar aceitável colocar vidas em risco por causa da economia, não importa o número delas. A economia deve ser adaptada às necessidades humanas e não ao contrário. Entender isso deveria ser natural ao ser humano, mas como isso ainda está longe de se praticar, existem os instrumentos legais que garantem o direito dos povos tradicionais e à garantia da quarentena como forma de proteção da saúde.
“Mais do que nunca, a saúde como valor e direito universal precisa ser afirmada, ao mesmo tempo em que se fortalece a importância de políticas públicas baseadas nas melhores evidências científicas. Fica claro o papel dos sistemas universais de saúde, como é o caso do Sistema Único de Saúde (SUS), um patrimônio da sociedade brasileira e um legado da Constituição Cidadã de 1988.” (FioCruz)
Estas populações específicas precisam não só de orientações claras acerca da pandemia, mas de renda e de respostas efetivas do Poder Público às suas necessidades. De políticas de proteção social e humanitárias que respeitem a vida e os direitos dos povos tradicionais. De programas emergenciais de saúde e da consolidação das politicas fundiárias de garantia de seus territórios, nos quais estão desenvolvendo um grande aprendizado e fortalecendo suas bandeiras de luta em meio ao caos: comunidades se reorganizando, fazendo barreiras sanitárias em suas entradas, criando e reforçando redes colaborativas, incentivando a economia solidária, cobrando ações das autoridades e da sociedade.
Mas é preciso que elas não sejam deixadas isoladas à frente de suas barreiras, nas quais diariamente enfrentam a intolerância e a arrogância dos que não pactuam a menor responsabilidade social e querem usufruir de suas casas na praia como se estivessem de férias, enquanto a população se esforça numa quarentena que limita seus movimentos e suas fontes de renda em prol de um bem maior que é a saúde coletiva, não só local, mas do município e do país.
Há duas pandemias a se combater, a COVID-19 e a ganância capitalista! E para isso, um sistema público de saúde de qualidade e equidade e o respeito aos direitos são valores inegociáveis, hoje e sempre!
FÓRUM DE COMUNIDADES TRADICIONAIS ANGRA-PARATY-UBATUBA