Aqui é outro paraíso - Conheça os saberes, fazeres e a luta no Quilombo da Fazenda
“Aqui é outro paraíso” – explica o griô Zé Pedro. São muitas as descobertas do visitante que busca conhecer o Quilombo da Fazenda! “O turismo que nós fazemos aqui não é de temporada, ele é feito em todas as épocas do ano” – destaca Laura, liderança da Associação Comunitária de Remanescentes de Quilombo da Fazenda. É um turismo que foge da lógica capitalista de exploração, comércio e consumo; e se baseia na riqueza da experiência de se conectar com pessoas e territórios.
“Dinheiro não é mais que gente” – roda de conversa com o griô Zé Pedro
“A gente tem que acreditar...” – começa falar o Sr. Zé Pedro, com seu jeito ritmado, contínuo e suave, destilando sabedorias de vida, enquanto narra casos que prendem a atenção do ouvinte... E vai emendando um caso no outro, explicando como se fazia para tratar picada de cobra, para ir caminhando até as cidades vizinhas, como era e como é a vida por ali. Sentado ali ao lado da grande roda d’água da Casa de Farinha, o visitante é envolvido pelos cheiros e sons da mata atlântica vigorosa ao redor, que fazem um cenário de fundo permanente para a voz do griô. “O mundo é o mesmo, o tempo é que outro” – entoa Zé Pedro e lá vem outra história.
Casa da Farinha
A Casa da Farinha é um antigo engenho de milho, cana de açúcar e álcool construída no final do século XIX. Todo funcionamento se dá a partir de uma grande roda d'água construída pelos escravos da antiga Fazenda Picinguaba (do tupi-guarani, reduto de peixes). O engenho é de ferro fundido, importado da Inglaterra. Foi transportado até este local pelo Rio da Fazenda, que era navegável. Hoje a comunidade produz uma pequena quantidade de farinha, principalmente devido as limitações ao plantio de mandioca após a criação do Parque Estadual da Serra do Mar, sobrepondo essa unidade de conservação ambiental ao território tradicional quilombola.
Trilha do Jatobá
Cristiano, monitor quilombola, orienta os visitantes que optam por conhecer a Trilha do Jatobá. Começando na Casa da Farinha, a caminhada segue por dentro da mata. Atravessa a barragem feita para canalizar parte do curso do rio até roda d’água da Casa da Farinha. O monitor compartilha com os visitantes suas percepções sobre a natureza ao redor, apresentando: a flor de cera (da família do café), a figueira mata-pau (planta parasita), a noz moscada brasileira, a bicuiba (que serve para biocombustível e sementes para artesanato), o mamãozinho do mato, a embaúba (usada antigamente para fazer encanamento, chá para diabetes e rolo para puxar canoa), a palmeira juçara, o ipê e o centenário Jatobá. Cristiano explica que da fruta do jatobá se faz farinha, remédios naturais e até biocombustível: “o chá deste jatobá já curou dezenas de pessoas no quilombo.” Ainda nesta trilha, os visitantes podem se refrescar nadando no poço paradisíaco de uma cachoeira do Rio da Fazenda.
Visita à agrofloresta
Feliciano, monitor e agricultor quilombola, orienta os visitantes que optam por conhecer a visita à agrofloresta, explicando os usos tradicionais das plantas ao redor: comestíveis, medicinais e para construção. Além dos saberes tradicionais, o agricultor apresenta os conhecimentos recentes aplicados nos plantios agroecológicos, que imitam o comportamento da floresta. Esses conhecimentos foram aprimorados nos últimos dez anos, a partir da cooperação com técnicos. Neste período, os quilombolas passaram a fazer roças sem fogo e implantar sistemas produtivos diversificados, com mais de sessenta espécies nativas e exóticas.
A palmeira juçara quase chegou a extinção na época em que a comercialização do palmito era uma das poucas alternativas de renda. Hoje não precisam derrubar as palmeiras, pois o uso dos frutos da juçara gera uma renda significativa. O palmito, agora, vem da palmeira pupunha (domesticada pelos indígenas da Amazônia). A pupunha se reproduz em touceiras. Logo, o corte de um tronco de pupunha para retirada do palmito não mata a planta.
Além do exemplo das palmeiras juçara e pupunha, Feliciano segue explicando como são preparados os plantios agroflorestais. São planejados: o espaço que cada planta ocupa, sua altura, tipo de copa e tipo de raiz. O planejamento permite o plantio conjunto de plantas que vão ocupar vários níveis de altura. As rasteiras, usadas no começo do plantio, como mandioca, feijão e milho, preparam o solo. As árvores que gostam de sombra, como o cacau e o cupuaçu, ocupam um segundo nível. As árvores do futuro vão crescer até o ponto mais alto. As pioneiras são as mais podadas e as que mais ajudam a adubar a terra.
A roça agroflorestal de umas das famílias quilombolas impressiona pela imensa diversidade plantada em um hectare. São centenas de pés de juçara e cambuci, por exemplo, que motivam os jovens da comunidade a resgatar suas tradições e trilharem o caminho da roça agroecológica como alternativa de renda, preservação ambiental e qualidade de vida. Apanhar um cacau no pé, abrir e se deliciar... faz parte do roteiro, para os visitantes atentos aos frutos maduros ao redor.
Ô de Casa – tambores da Fazenda
O visitante em busca de uma apresentação cultural, se encantará com a experiência de entrar na roda do grupo Ô de Casa. Formado por jovens, crianças e adultos do Quilombo da Fazenda, o grupo surgiu em 2010, a partir de oficinas de preservação dos ritmos musicais tradicionais. O grupo tem como objetivo reaproximar os jovens e crianças dos ritmos musicais que fazem parte da história da comunidade. Ô de Casa tem em seu repertório ritmos tradicionais locais, como o jongo e fandango caiçara, e ritmos tradicionais afrobrasileiros de outras regiões, como o maracatu. Os instrumentos e roupas utilizados pelo grupo são confeccionados pelos próprios artistas.
Casa de Artesanato e oficina de cestaria
Na Casa de Artesanato, o visitante pode conhecer e comprar artesanatos singulares feitos no Quilombo da Fazenda. E pode ir além, participando de uma oficina de cestaria quilombola. Na oficina, as artesãs da comunidade ensinam a fazer arte utilizando a palha de taboa. Essa técnica é utilizada para construção de cestos, esteiras, enfeites para a casa e uma série de belos objetos feitos à mão. Essa vivência proporciona aos visitantes a possibilidade de conhecer mais sobre o dia-a-dia das artesãs quilombolas. Enquanto as mãos tecem formas novas para as palhas de taboa entrelaçadas, compartilham-se conhecimentos sobre a colheita da taboa, técnicas de artesanato, além de histórias sobre a vida no território.
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Gastronomia quilombola
A diversidade e a criatividade com que as cozinheiras do Quilombo da Fazenda reinventam a gastronomia tradicional quilombola é o ponto alto do roteiro, que encanta todos visitantes. “Quem chega aqui não vem pra comer macarrão à bolonhesa, vem pra comer alimento agroecológico”, afirma Laura. Dentro da Casa da Farinha, o restaurante comunitário oferece pratos com ingredientes nativos da mata atlântica, combinando-os com influências tradicionais: salada de umbigo de bananeira, azul marinho, strogonoff de lula com juçara, feijoada e diversas criações com taioba, mandioca, peixes e biomassa de banana; além de sucos tropicais deliciosos de juçara, cambuci, cacau, jambo etc.
História e luta em defesa do território
A primeira notícia que se tem da “Fazenda Picinguaba” é de 1884, quando faleceu Maria Alves de Paiva, proprietária da Fazenda. Em seu testamento, declara o desejo que seus escravos sejam libertos e que possam habitar em certas áreas da Fazenda. Desde então a Fazenda Picinguaba é de vários proprietários até que, no ano de 1943, o Sr. Saint Claire adquire parte da Fazenda e nomeia o Sr. Leopoldo Braga como o administrador da Fazenda Picinguaba. Leopoldo recebe a autorização de trazer 12 famílias para trabalharem através de usufruto, sendo proibidas de vender e arrendar suas terras. Em 1951, a Fazenda Picinguaba foi hipotecada pela Caixa Econômica do Estado de São Paulo e perdurou esse domínio até 1974. Por isso, a Fazenda Picinguaba também é conhecida como Fazenda da Caixa. Em 1975, foi construído o trecho entre Ubatuba e Paraty (RJ) da rodovia Rio-Santos (BR-101). Em 1979, a Fazenda foi anexada ao Parque Estadual da Serra do Mar.
Em 2005, a Fazenda Picinguaba recebeu o reconhecimento da Fundação Palmares por ser uma comunidade remanescente de quilombo. Em 2007, o Instituto de Terras do Estado de São Paulo entregou à Fundação Florestal (órgão ligado à Secretaria Estadual de Meio Ambiente de São Paulo) o relatório técnico reconhecendo o território quilombola da Fazenda da Caixa. Desde então, acumulam-se lutas e mobilizações para que o Governo Estadual concretize a titulação deste território – um território já reconhecido e garantido em lei federal, mas ainda não titulado pelo poder executivo estadual.
Roteiro:
Roda de conversa com o griô Zé Pedro, Casa da Farinha, cachoeira, Trilha do Jatobá, visita à agrofloresta, oficina de cestaria, grupo Ô de Casa e gastronomia quilombola.
Contato:
Laura: (12) 99777-4130
Alessandra: (12) 99736-3637
alessandrabraga0@gmail.com
turismocomunitario.fct@gmail.com
Localização:
Próximo à Praia da Fazenda, na região norte de Ubatuba-SP. Rod. Rio Santos, Km 11. Estrada da Casa da Farinha
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Colaboraram: Augusto Cajú, Érika Braz, Natália Bahia, Pedro Gontijo e Vanessa Cancian Fotos: Eduardo Di Napoli e Gustavo Cerqueira
Vídeo e áudio: Eduardo Di Napoli