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Nota de repúdio à opinião do jornal O Estado de S. Paulo sobre povos e comunidades tradicionais.


O Fórum de Comunidades Tradicionais Caiçaras, Indígenas Guarani e Quilombolas de Angra dos Reis, Paraty e Ubatuba repudia a opinião do jornal O Estado de S. Paulo publicada no dia 16 de maio de 2016, no texto com o título Dilma e os povos tradicionais.

Neste texto de apenas sete parágrafos, o Estadão conseguiu demonstrar imensa ignorância em relação à questão dos povos tradicionais e/ou intenção de combater os direitos que conquistamos. Tudo isto para forçar uma conclusão de que as experiências de participação popular são um desperdício de recursos públicos; pois, para os opinadores do Estadão, o Congresso Nacional deve ser a única esfera de participação “popular” no governo brasileiro.

Ao criticar o Decreto 8.750, que cria o Conselho Nacional de Povos e Comunidades Tradicionais, assinado pela Presidenta Dilma Rousseff na última semana antes de ser golpeada, o Estadão diz:

“A menção a ‘povos e comunidades tradicionais’ pouco ajuda a detectar qual é a área de atuação do novo Conselho. Desconhece-se a existência de um povo ao qual não se possa atribuir o qualificativo ‘tradicional’. Afinal, povo é um agrupamento humano com elementos culturais comuns, ou seja, todo e qualquer povo tem suas tradições.”

Neste ponto que é o fundamento de toda a opinião do Estadão, os opinadores evidenciam o seu próprio “desconhecimento”. Ignoram, pelo menos, duas grandes peças legislativas e uma imensa bibliografia acadêmica sobre o assunto.

Decreto 6.040, de 2007

O Estadão desconsidera, por exemplo, o Decreto 6040, de 7 de fevereiro de 2007, que institui a Política Nacional de Desenvolvimento Sustentável dos Povos e Comunidades Tradicionais. Este decreto explicita, em seu artigo 3o, o que são “Povos e Comunidades Tradicionais: grupos culturalmente diferenciados e que se reconhecem como tais, que possuem formas próprias de organização social, que ocupam e usam territórios e recursos naturais como condição para sua reprodução cultural, social, religiosa, ancestral e econômica, utilizando conhecimentos, inovações e práticas gerados e transmitidos pela tradição.” O Decreto foi assinado pelo Presidente Lula, pelo Ministro Patrus Ananias e pela Ministra Marina Silva.

Convenção 169 da OIT, ratificada pelo Brasil em 2002

Bem longe de qualquer relação com governos do PT (tão criticados pelos opinadores do Estadão), está também outra peça legislativa “ignorada” pelo jornal; uma peça que tem como autora uma agência das Nações Unidas e que foi ratificada pelo Presidente Fernando Henrique Cardoso (em 25 de julho de 2002): a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho sobre Povos Indígenas e Tribais.

A Convenção 169 adotada pela OIT em 1989 é fruto de um longo e amplo processo de luta de povos e comunidades tradicionais do mundo todo. Notem que todos os elementos e critérios estabelecidos para definir os povos e comunidades tradicionais no Decreto 6.040 (2007) são baseados no artigo 1º da Convenção 169 da OIT:

“Art. 1o

1. A presente convenção se aplica:

a) aos povos tribais em países independentes, cujas condições sociais, culturais e econômicas os distingam de outros setores da coletividade nacional, e que estejam regidos, total ou parcialmente, por seus próprios costumes ou tradições ou por legislação especial.

b) aos povos em países independentes, considerados indígenas pelo fato de descenderem de populações que habitavam o país ou uma região geográfica pertencente ao país na época da conquista ou da colonização ou do estabelecimento das atuais fronteiras estatais e que, seja qual for sua situação jurídica, conservam todas as suas próprias instituições sociais, econômicas, culturais e políticas, ou parte delas.

2. A consciência de sua identidade indígena ou tribal deverá ser considerada como critério fundamental para determinar os grupos aos que se aplicam as disposições da presente Convenção.”

Portanto, é em consonância com e em respeito ao conceito desenvolvido por esta convenção adotada pela ONU em 1989 e ratificada pelo Brasil antes do primeiro Governo Lula, que se desenvolveu a Política Nacional Sobre Povos Tradicionais; e é sobre esta política que se baseia o Conselho Nacional de Povos e Comunidades Tradicionais, criado por Dilma Rousseff.

Não é um invenção do PT e muito menos um absurdo lógico, como a opinião desinformada e/ou desinformadora do Estadão tenta apresentar.

Para responder a ignorância do Estadão (“desconhece-se a existência de um povo ao qual não se possa atribuir o qualificativo ‘tradicional’”), evidenciamos que, tanto no ordenamento jurídico brasileiro quanto nas convenções das Nações Unidas, só podem ser qualificadas como povos ou comunidades tradicionais os agrupamentos humanos que reúnam as seguintes características:

  • existência de condições sociais, culturais e econômicas diferentes de outros setores da sociedade nacional;

  • a presença de uma organização social regida total ou parcialmente por regras e tradições próprias;

  • e a auto-identificação, entendida como a consciência que tem o grupo social de sua identidade tribal.

Indignação

É com profunda indignação que nós – caiçaras, indígenas guarani e quilombolas – lemos a opinião equivocada do Estadão, com informações distorcidas e desrespeitosas em relação à brasileiras e brasileiros de povos e comunidades tradicionais; não respeitando nossa história, nossas culturas, nosso modo de vida. Pessoas humildes e íntegras formam esses de grupos de Povos e Comunidades Tradicionais, que batalham o dia a dia debaixo de sol, com suor, para a garantir a grandeza e a diversidade do Brasil. Não julguem o que não conhecem. Neste caso, o silencio (ou o estudo) seria de grande sabedoria.

Pesquisem por exemplo as diversas produções acadêmicas das principais universidades brasileiras que comprovam como a resistência dos povos e comunidades tradicionais (no sentido expresso pelo decreto criticado) em seus territórios, preservando seus modos de viver e seus saberes, é o principal responsável por grande parte da preservação dos recursos naturais brasileiros.

Ah!! Se não fossem os Povos e Comunidades Tradicionais do Brasil... haveria muito mais terra envenenada com agrotóxicos, muito menos água disponível, menos ritmo em nossas músicas, menos sabor nas nossas mesas! Somos culturas seculares, resistentes frentes a diversas violências, algumas inclusive anteriores ao Brasil ser Brasil. Mas agora, momento em que se galga o mínimo de direitos, mesmo com séculos de atraso, deparamo-nos com essas criticas desqualificadas dos opinadores do Estadão.

Nós, povos e comunidades tradicionais, não somos só os povos do passado, somos também o povo do presente e o do futuro. Estão em nossos saberes e modos de vida as soluções para vários dos dilemas da sustentabilidade que desafiam o mundo moderno capitalista e globalizado.

Exigimos pedidos de retratação e desculpas aos povos e comunidades tradicionais.

Fórum de Comunidades Tradicionais – Angra/Paraty/Ubatuba – Quilombolas, Indígenas e Caiçaras.

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