Militantes do FCT superlotaram audiência pública da ALERJ
Representantes de 27 quilombos, 11 comunidades caiçaras e 4 aldeias indígenas de várias regiões do Rio de Janeiro se apresentaram para defender e aprimorar a PEC Estadual dos Povos e Comunidades Tradicionais. O auditório da Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro (ALERJ) ficou pequeno para o público de mais de 200 pessoas, muitos tiveram que assistir pela televisão dos gabinetes parlamentares. Representando o Fórum de Comunidades Tradicionais de Angra dos Reis, Paraty e Ubatuba (FCT), estavam mais de 40 indígenas guarani, quilombolas e caiçaras. A audiência pública foi realizada na tarde de 24 de agosto, pela Comissão de Defesa dos Direitos Humanos e da Cidadania da ALERJ.
Na mesa oficial, os povos e comunidades tradicionais do estado foram representados por: Jardson dos Santos (Comunidade Caiçara da Praia do Sono, Paraty/FCT); Ivone Bernardo (ACQUILERJ – Associação das Comunidades Quilombolas do Estado do Rio de Janeiro); Júlio Karai (Aldeia Sapukai, Angra dos Reis/FCT); e Vilson Corrêa (ACCLAPEZ – Associação de Pescadores de Zacarias, Maricá).
Completaram a mesa: Geisy Leopoldo (INEA – Instituto Estadual do Ambiente), Prof. Ronaldo Lobão (UFF – Universidade Federal Fluminense), Dra. Lívia Casseres (NUDEDH – Núcleo de Defesa dos Direitos Humanos da Defensoria Pública do Rio de Janeiro); e os deputados da bancada do PSOL, que assinaram a autoria da PEC – Marcelo Freixo, Flávio Serafini, Eliomar Coelho e Julianelli.
Os presentes decidiram encaminhar um questionário a todas comunidades tradicionais do estado do Rio de Janeiro para que elas se apropriem do conteúdo da PEC e encaminhem sugestões. O resultado da aplicação destes questionários será sistematizado pelo grupo de trabalho composto por: FCT, ACQUILERJ, NUDEDH e Comissão de Direitos Humanos da ALERJ. Para ser aprovada, a PEC precisará receber, no plenário, o voto “sim” de 42 dos 70 deputados em duas votações separadas.
A nossa PEC
O Deputado Marcelo Freixo abriu a sessão ressaltando que esta PEC foi apresentada à ALERJ pela bancada do PSOL, mas foi feita pelos movimentos sociais ali presentes. O Deputado Flávio Serafini explicou que o sentido desta proposta legislativa é o de proteger os povos e comunidades tradicionais em relação às várias pressões que decorrem principalmente de empreendimentos imobiliários ou turísticos e da recategorização das unidades de conservação ambiental sobrepostas ao território das comunidades tradicionais. “Esta PEC prevê direitos ligados ao território, à educação, à saúde, à cultura, à não discriminação e à consulta prévia. Aqui estão direitos previstos na Constituição Federal, mas ainda não explícitos na Constituição Estadual; e também outros direitos que ainda não estão explícitos na Constituição Federal, apesar de estarem previstos em tratados internacionais dos quais o Brasil é signatário, como é o caso do direito à consulta prévia” – destacou Serafini.
“Esta é a nossa PEC” – afimou Jardson dos Santos – “o debate não temina aqui, ele continua e precisa ser emancipador. Temos que continuar mobilizados para não derrubarem nossa PEC e, depois, para implementá-la de fato.” Ivone Benardo destacou a importância desta iniciativa para se construir uma política de estado, permanente. Júlio Karai lembrou que além de avançar com esta PEC estadual, é preciso lutar contra uma outra PEC – a PEC 215, que está em tramitação no Congresso Nacional. Vilson justificou a importância da PEC denunciando o assédio de empreendedores espanhóis que planejam construir um resort ameaçando os pescadores de Zacarias e a restinga de Maricá-RJ.
O Prof. Ronaldo Lobão defendeu a PEC como instrumento para desfazer a grande mentira de que seríamos um povo constituído da mistura fraterna de europeus, indígenas e africanos; e para combater a prática da tutela. “Esta PEC, feita pelos povos e comunidades tradicionais, combate a tutela ao exigir acessos diferenciados à direitos universais” – explanou o professor. A Dra. Lívia Cásseres explicou que a Defensoria Pública do RJ está disposta a estar junto das comunidades, não apenas esperando as demandas, mas construindo junto a luta pelo acesso aos direitos jurídicos dessas comunidades. “Vocês desafiam o modelo de sociedade que aí está. Não é pequena a dificuldade deste desafio, mas esta audiência já é uma prova da força deste movimento e de seus aliados” – concluiu a Dra. Lívia.
O Deputado Eliomar Coelho ressaltou a importância do movimento se manter mobilizado durante toda a tramitação da PEC na ALERJ. O Deputado Julianelli manifestou seu entendimento de que essa proposta legislativa deve ser defendida por toda a sociedade, na medida em que tomam consciência de que preservar as comunidades tradicionais é proteger uma forma de vida social que não destrói o seu entorno.
Geisy Leopoldo afirmou que o INEA está interessado em abrir o diálogo e convidou os deputados a marcarem uma reunião com o INEA para formalizar as críticas feitas pelos militantes nesta audiência. O Deputado Freixo aceitou o convite da reunião, mas propôs a formação de um grupo de trabalho representativo de todas as comunidades tradicionais para estarem juntos com os deputados nesta reunião com o INEA sobre as questões levantadas pelas comunidades. “É fundamental que o INEA apoie a PEC; que leiam, discutam e se posicionem a favor da PEC” – pediu o Deputado Freixo.
Após as falas dos componentes da mesa oficial, o diálogo foi aberto para o auditório. Representantes de 16 comunidades manifestaram suas ideias e denúncias relacionadas principalmente às dificuldades enfrentadas para garantirem o direito básico ao território, criticando a atuação do INEA e do INCRA-RJ. Durante o diálogo, representantes do Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA), da Secretaria Estadual de Cultura e do Instituto Estadual do Patrimônio Cultural (INEPAC) se manifestaram a favor da PEC, assim como todos os membros do auditório.
Diálogo crítico com INEA
Os militantes questionaram a atuação do INEA, comparando aprovações de alguns empreendimentos econômicos que impactam o meio ambiente com a criminalização rápida pela aplicação de multas de mais de R$5 mil contra membros de comunidades tradicionais devido a atividades como uma pequena reforma residencial. “Não estamos lidando com bandidos e criminosos! É preciso esgotar todos os meios administrativos de diálogo e orientação antes de iniciar ações judiciais, autuações e multas” – afirmou Thatiana Lourival, assessora jurídica do Observatório de Territórios Sustentáveis e Saudáveis da Bocaina (Fiocruz e FCT).
Os militantes citaram, como exemplo: o licenciamento prévio dado pelo INEA para a construção de um resort que ameaça a comunidade caiçara de Zacarias e a restinga de Maricá-RJ; a liberação das obras do Complexo Petroquímico do Rio de Janeiro (COMPERJ); e diversas multas recebidas por comunitários sem nenhuma comunicação prévia. Geisy Leopoldo respondeu às críticas afirmando que a administração atual do INEA recentemente criou uma diretoria de gestão socioambiental justamente para melhorar este diálogo com as comunidades.
Diálogo crítico com INCRA-RJ
A atuação do INCRA-RJ também foi duramente criticada, principalmente por ter arquivado processos de reconhecimento de comunidades quilombolas, já reconhecidas tecnicamente em vários relatórios antropológicos, e também pela lentidão extrema em encaminhar os processos de titulação. Ivone Bernardo (ACQUILERJ) e outros militantes evidenciaram o fato do estado do Rio de Janeiro ter 42 comunidades quilombolas identificadas, porém apenas 2 destas comunidades têm título reconhecido pelo Governo Estadual e nenhuma tem título reconhecido pelo Governo Federal.
Gustavo Noronha, representante do INCRA-RJ respondeu às críticas afirmando que todos os processos podem ser revistos; propondo que a Mesa Estadual Quilombola deste ano seja feita junto com a ALERJ, para rever estes processos; citou o trabalho do INCRA na construção da documentação necessária para a titulação da Comunidade Preto Forro e na titulação da Marambaia, que está próxima de ser concluída; e informou que já existe uma modalidade de titulação possível também para comunidades caiçaras.
Confiram o vídeo completo da audiência pública:
Texto-base da PEC dos Povos e Comunidades Tradicionais
“Art 38-A - São reconhecidos aos povos e comunidades tradicionais sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo ao Estado garantir a proteção e os espaços necessários à sua reprodução cultural, social e econômica.
§ 1º - É assegurado aos povos e comunidades tradicionais o direito de viver de acordo com seus usos e práticas tradicionais, assim como o efetivo exercício de sua cidadania.
§ 2° - O Estado, através de seus órgãos competentes, deverá assegurar aos povos e comunidades tradicionais, inclusive aqueles residentes em áreas ambientalmente protegidas, o direito ao uso e fruição coletiva de seu território tradicional, para fim de reprodução cultural, social e ambiental das referidas comunidades.
§ 3º - O Estado deverá consultar previamente os povos e comunidades tradicionais sempre que previstas medidas legislativas ou administrativas suscetíveis de afetá-los diretamente, devendo buscar a harmonização entre o interesse público e o interesse coletivo dos povos e comunidades tradicionais.
§ 4° - É vedada qualquer forma de violência e discriminação contra povos e comunidades tradicionais ou contra seus membros.
§ 5° - No atendimento aos povos e comunidades tradicionais, as ações e serviços públicos, de qualquer natureza, devem integrar-se e adaptar-se às suas tradições, costumes e organização social.
§ 6° - O Estado proporcionará aos povos e comunidades tradicionais o ensino público regular, adequado à sua sobrevivência cultural, devendo o órgão estadual de educação desenvolver ações para a inclusão das práticas e saberes tradicionais no ambiente escolar, subordinando sua implantação à solicitação por parte de cada comunidade interessada.
§ 7° - Serão asseguradas aos povos e comunidades tradicionais a promoção e o desenvolvimento socioeconômico de suas comunidades, mediante programas de auto-sustentação, considerando as especificidades ambientais, culturais e tecnológicas do grupo ou comunidade envolvida.
§ 8° - Para fins conceituais, consideram-se povos e comunidades tradicionais aqueles descritos no Decreto Federal n° 6040 de 2007, no Decreto Federal n° 5051 de 2004, que promulga a Convenção n° 169 da Organização Internacional do Trabalho - OIT sobre Povos Indígenas e Tribais, e no Decreto Federal nº 4887 de 2003.”
Fotos: 1 Octacílio Barbosa - 2,3 e 4 Ricado Papu - 5 Pedro Chaltein